12/02/08

Terra Vermelha




  Terra vermelha que os meus pés pisaram em grandes correrias, em jogos de bola, em voos de pássaro.

  Terra vermelha que me viu crescer, dos namoricos das kilumbas, das cubatas entradas.

  Terra vermelha na qual caí em saltos de acrobata, em quedas na máscara, de arma na mão.

  Terra vermelha, das quitandeiras a apregoar a mandioca, a fuba, os cachos de banana, a paracuca, o jindungo, envoltas nos seus trajes multicolores de africana que preza ser, dos Kimbandas que tudo cura, das makas nos Recreativos, da cor que dás ao pôr-do-sol.

  Terra vermelha, terra do musonge (acácias), do imbondeiro e da velha mulemba.

  Terra vermelha quanto sangue ficou em ti derramado por ódios explorados.

  Terra vermelha que assististe ao abandono, ao choro chorado daqueles que por ti choraram na hora da partida.

  Terra vermelha que um dia a mim voltaste relembrando-me o quanto fui feliz na tua terra vermelha.

  Terra vermelha dessa cidade que nunca esquecerei.

P.S. - O meu agradecimento ao meu amigo Jorge (Daflon), que me trouxe, há pouco tempo, um pouco dessa terra vermelha de Luanda (na imagem).

B.º S. Paulo - Luanda




                                No B.º S. Paulo morei
                                Na Rua Vereador Prazeres
                                Naquelas ruas brinquei
                                Vi rostos de muitos sofreres

                                Fazíamos corridas aos centos
                                Junto às bombas de gasolina
                                De trotineta ou carros de rolamentos
                                Muitos éramos há partida

                                Jogávamos à bola ali perto
                                Em frente à Casa Lisboa
                                Num terreno deserto
                                Havia pancadaria da boa

                                No velho Cinema Colonial
                                Da geral ou plateia tanto faz
                                Dizia-se em barulheira infernal
                                “Artista... olha na tua atrás”

                                Bar Cravo, Magestic ou Mariazinha
                                Rua do Ambaca, Benguela, Lobito
                                Fazem parte como se adivinha
                                Do tempo em que dizia: «Em Luanda... fico!».

                                Mas a vida deu uns safanões
                                E um novo sopro saiu do auro
                                Agora só restam as recordações
                                Do meu lindo Bairro... S. Paulo!

Aiuê Angolê!

P.S. - Vou aqui colocar o poema da minha amiga Laura do blog    "Réstias de Sol".

  Esta minha amiga Laura, minha vizinha em Luanda, ficou surda aos 6 anos. A professora achava que era tempo perdido ensinar uma surda a saber ler e escrever. Mas a Laura nunca esmoreceu, soube dar a volta por cima e hoje escreve e sente como ninguém a voz do silêncio... do seu silêncio! Um dia sabendo o que quanto ela tinha para nos dar "ofereci-lhe" um blogue, o "Réstias..." e, assim, é ver a minha amiga Laura colocar lá todos os seus sentimentos em forma de prosa ou poemas.

  Nelas retrata a sua vivência e o seu amor por um Bairro (o nosso B.º S. Paulo), e acima de tudo por uma cidade que foi o grande amor da sua vida... Luanda.

  Neste poema a Laura lembra aquela idílica Ilha que faz parte do imaginário de cada um de vós e que nós, em Luanda, bem a conhecíamos quando o barco "Kapossoca" atracava no cais e éramos recebidos com colares de missangas,... a Ilha do Mussulo.


O Poema

Quero ser de novo a garota feliz, lá do bairro,
Quero sair por aí, passear na minha ilha,
Conversar com meus amigos
Correr com eles pela praia.

Jogar ao ringue, dar ao arco, mergulhar lá no charco
Que tinha na minha ilha, quando a maré vazava
E não havia maralha que resistisse a saltar,
A berrar pelas alforrecas que dançavam ao nosso redor
E nos faziam correr, chorar e gritar de dor.

Quero ir para a minha ilha
Encontrar um pescador vê-lo a deitar as redes,
E ir com ele pelo mar na canoa a flutuar
Ter a qualquer lugar, que lá na nossa ilha
Era tudo ao pé da mão, podíamos apanhar
Mamões, bananas e papaias lá nas praias,
As mangas eram um nunca mais acabar
Era saltar dentro da água e comer até fartar,
Para as mãos não ser preciso ir lá fora lavar.

Quero ir à minha ilha, sentar ali ao pé dela
Falar da minha vida e o que tem sido
O meu regressar a outra terra, a outro mar
Dizer-lhe bem no ouvido, que, mesmo de longe
A continuo a amar!...

Domingo à Tarde!...




 Longe vão os tempos em que no Domingo à tarde se ia dançar ali para o Bairro da Boavista na Textang, Ferrovia, Terra-Nova, Casa do Minho ou no Transmontano e dançar ao som do Nelson Ned. Depois, pegar na toalha e ir desfrutar das águas cálidas do Atlântico, na praia da Floresta, na de S. Jorge, no Restinga, na Tamar, na Praia do Sol, até o sol se afundar no mar e ouvir o silvo como se ele fosse esfriando para esse mesmo sol se transformar em Lua.

 Longe vão os tempos que nos Domingos à tarde se ia beber umas Cucas ou umas Nocais acompanhando uma boa lagosta ou umas gambas de estalo, à Biker, ao Amazonas ou uma dobradinha ali no Bar Cravo e ser considerado um dos MacGregors.

 Longe vão os tempos em que no Domingo à tarde se ia a uma Matiné dançante no Tropical, ou ver o “Cazumbi” programa de variedades e de entretenimento no Miramar.

 Longe vão os tempos em que ir ao cinema era como ir ao Teatro Avenida onde, a uma pausa de um concerto de um pianista, o povo se levantava e logo se sentava pois aquilo era só uma pausa, um descansar de mãos momentâneo.

 Ir ao cinema era ver as garinas, dar um assobio e elas ruborescerem. Era ver o "El Cid - o campeador", Sansão e Dalila, Trinitá- cowboy insolente, filmes onde as pistolas tinham balas que nunca mais acabavam.

 Ir ao cinema era; mirar a Marginal, o mar, as barrocas e sonhar por um país que afinal nunca o chegou a ser.

 Domingo à tarde era uma ida ao Cacuaco, a Viana ou um passeio até à Ilha.

 Domingo à tarde era dia de jogo nos Coqueiros.

 Domingo à tarde era altura de passear com a namorada, da mão marota, do descobrir novas emoções.

 Agora no Domingo à tarde Josefina, estendida na esteira, vai olhando para a porta da palhota ouvindo “esdomingo_ditarde”.

 Até este Domingo já não é o que era!...

O Despertar!...




 Entrei a medo. Uma lamparina iluminava vagamente o interior mostrando uma pequena cómoda e pouco mais. Na parede uma imagem protectora.

 Olhei para ti. Deitada na esteira, aguardavas-me como se esse acto fizesse parte do teu dia a dia. Confesso que bebi um pouco para ter a coragem suficiente para te bater à porta. Cá fora, o bulício próprio das noites quentes de África, homens procuravam mais uma noite de prazer.

 De vez em quando gritos ecoavam, uma mão caía com força na cara de uma mulher obrigando-a a prostituir-se para os seus vícios.

 Em cada porta havia um corpo desgastado pelo tempo aguardando que um olhar se voltasse para ele a fim de que mais uma migalha de pão pudesse ser tragado pelo candengue que na escuridão da cubata a tudo assistia.

 Mas tu não, aguardavas-me silenciosa perscrutando-me com os teus olhos negros. Sinto que sorriste ao de leve ao sentires a minha atrapalhação. Fizeste-me sinal para me sentar a teu lado.

 Deslizaste a mão suavemente pelo meu corpo suado. Corpo imberbe ainda, onde aqui e ali um pequeno tufo de pelos anunciava o fim do adolescente e o principio do homem.

 No meu jeito desastrado, como a descobrir a essência do corpo de uma mulher, procurei corresponder mas, os sentidos nublados pelo etílico inibia-me o gesto, o movimento e, a mão, quedou-se nos teus peitos hirtos.

 Pouco a pouco foste-me retirando cada peça de roupa, o teu corpo de corça enroscou-se no meu, os sentidos foram despertando lentamente como se a fronteira existente entre o adolescente e o homem fosse um pequeno abismo que tivesse que ser transporto não de um salto mas sim, como se tivesse que contornar cada obstáculo, devagar, devagarinho saboreando ao máximo o abandono do corpo de menino.

 Depois o êxtase, o clímax, deitado a teu lado, o meu corpo de homem abraçou o teu cor de ébano e adormecemos profundamente.

Cheiro do Mato




Ai que saudades do tempo em que o mundo rolava e eu criança brincava.

Ai que saudades do tempo em que fazia os meus brinquedos de bordão e as pessoas eram para mim puras.

Ai que saudades do tempo em que o sol descia e subia naquela baía e eu o contemplava.

Ai que saudades das minhas tardes de Domingo e dos amores de horas.

Ai que saudades do cheiro do mato, da terra vermelha e das quitandeiras.

Ai que saudades do tempo em que a vida corria sem mágoas nem canseiras.

Ai que saudades de tudo o que passei, mesmo sabendo que em cada dia eu mais crescia.

Ai que saudades das saudades que tinha de ti Luanda.

Hoje sou um homem sem saudades pois tudo na vida morre… até as saudades!

Inesquecível Boémia...




O tempo passa 
jamais apaga 
recordações  
que um dia vivi 
.................................

  Ir até à Vila Alice, estar ali na cavaqueira com os amigos, sentados nos bancos do Largo, e desfilar conversas sobre as miúdas conhecidas enquanto outros faziam malabarismos com as Zundapps nas noites silenciosas.

  As noites passadas no "Veleiro", 007 por baixo do Dancing "A Gruta", Flamingo, Iate, D. Quixote, no Sporting em Cabinda e tantas outras, e ali, sentado, bebia o meu Gin Tónico entre névoas de fumo, sentindo o erotismo dos sons, das palavras ditas até o romper da aurora.

  Das noites dançantes, pegar na toalha e ir refrescar o corpo suado nas águas cálidas do Atlântico ali na praia do Tamar, a seguir à “Boite” que lhe deu o nome.

"Boite Tamar" - 1º edifício à esquerda.


  Sair da esteira e vir cheirar os cheiros do “Mar Vegetal” nas noites em que o corpo se espreguiçava no corpo dolente de uma africana.

  Dos caminhos sem fim, de passos perdidos ou de vidas achadas no calor da noite onde a bebida escorria entre gargalhadas de circunstância depois de um murmúrio, fez parte da minha...

... Inesquecível boémia. Não foi muita, mas foi vivida intensamente.

Versos de Amor




 Sentado no alpendre, olha longamente as sombras da noite. No seu regaço, a companheira que o acompanhava já há algum tempo. Confiava nela, tinha-a sempre pronta a servir-lhe caso tivesse necessidade disso, esperava bem que não. Fazia dois anos que estavam juntos. Olhou para as suas botas. Botas que palmilharam muitas léguas, muitos caminhos percorridos, sempre as mesmas. Embora desgastadas pelo tempo faziam parte do seu corpo.

 As sombras alongavam-se. Ali estava ele, sozinho na noite sempre há espera de um amanhã que poderia não chegar. Pegou na sua companheira, a sua arma, e deambulou pelo quartel. Figura esbelta, a lua alongava a sua sombra como a levá-lo para o outro lado do Atlântico. No bolso do seu camuflado, surgia a ponta de algo que recebera nesse dia. Era sempre uma alegria para aqueles homens quando recebiam a volta do correio. Rostos tisnados pelo sol implacável, endurecidos pelas lutas, pelas caminhadas, pelas incertezas, na hora do correio, aqueles mesmos rostos, abriam-se como crianças à espera de um brinquedo. A alegria de uns era a tristeza de outros por não receberem nada que lhes acalentasse a solidão.

 Pegou mais uma vez naquela carta. Já a tinha lido dezenas de vezes, mas era como se fosse sempre a primeira. No dia seguinte partiria de novo. Não sabia se iria regressar. Entra no seu quarto. Um cubículo. A sua cama resguardada pelo mosquiteiro aguardava-o. Mas ele não o fez. Puxou de um banco e sentou-se junto à mesa que lhe servia de escrivaninha. Pegou na folha em branco, olhou para ela e, com lágrimas nos olhos, talvez pela última vez, escreveu... Versos de Amor.


Cantam os pássaros no céu, Como é lindo o seu cantar, Cantam, quando os lábios teus, Aos meus se vão juntar...


13Mai73

Monangambééé...




  As conversas são como as cerejas, já diz o ditado popular. Ao ler as estórias do meu mano Leaoverde (é verde, nem toda gente é perfeita), desfiando recordações que são mútuas, e pesquisando para um trabalho que tem como base dar a conhecer a música de Angola eis que me deparo com um “site” onde estão reunidas muitas das músicas que, quando kandengue (criança) e adolescente, ouvia amiudamente na rádio.

 A rádio era, para quem lá estava, a única companhia pois não havia televisão. Era mau?... Nem pensar!... os miúdos dessa época ocupavam o tempo não sentados em frente à TV ou a jogar “Games Boys”, mas a fazer os seus próprios brinquedos. A rua era o seu mundo a brincadeira a sua estrada.

 Hoje estou ouvindo músicas de cantores que fizeram história no meu tempo. O título da música que estão a ouvir, «Monangambe», cantada pelo Ruy Mingas, faz-me recordar uma frase que, quando garotos, dizíamos ao pessoal contratado que ia em pé, atrás, nas carrinhas para o local de trabalho:

- Monangambééé... – dizíamos nós.

- Eu vou nas “carinha” e tu vais a pé – retorquiam eles

… E era verdade, enquanto eles iam na carrinha nós íamos a pé,… em frente para um futuro, ceifado pelos canos das espingardas.

"Monangamba"

Naquela roça grande não tem chuva 
é o suor do meu rosto que rega as plantações; 
Naquela roça grande tem café maduro 
e aquele vermelho-cereja 
são gotas do meu sangue feitas seiva. 
O café vai ser torrado 
pisado, torturado, 
vai ficar negro, 
negro da cor do contratado. 
Negro da cor do contratado! 
Perguntem as aves que cantam, 
aos regatos de alegre serpentear 
e ao vento forte do sertão: 
Quem se levanta cedo? quem vai a tonga? 
Quem traz pela estrada longa 
a tipoia ou o cacho de dendém? 
Quem capina e em paga recebe desdem 
fuba podre, peixe podre, 
panos ruins, cinquenta angolares 
"porrada se refilares"? 
Quem? 
Quem faz o milho crescer 
e os laranjais florescer 
- Quem? 
Quem dá dinheiro para o patrão comprar 
maquinas, carros, senhoras 
e cabeças de pretos para os motores? 
Quem faz o branco prosperar, 
ter barriga grande - ter dinheiro? 
- Quem? 
E as aves que cantam, 
os regatos de alegre serpentear 
e o vento forte do sertão 
responderão: 
- "Monangambééé..." 
Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras 
Deixem-me beber maruvo, maruvo 
e esquecer diluído nas minhas bebedeiras 
- "Monangambéé...'"
António Jacinto (Poeta angolano, 1924-1991) de Poemas, 1961

 À barriga gorda do patrão de outrora outros “patrões” de agora, enchem a sua, à custa de um povo sofredor.

Aiuê Angolê

"Hoje não vou chorar"!...



  Ai Cesária, quantas lágrimas vertidas na melancolia do meu recanto, ouvindo os sons do mar azul, relembrando os corpos de mulher perfumados, das cacimbas, da moamba, da mãe preta carregando seu moleque nas costas indo na floresta carregar lenha.

 Ai que saudades me trazes Cesária, quando tinha a lua por minha testemunha nos arrebates do coração por mais uns momentos sensuais naquele mar imenso de matagal.

 Ai que saudades daqueles momentos estonteantes, do rodopio pela sala, dançando uma coladera ou, então, encostando o meu corpo, num gesto voluptuoso, contra o corpo quente de uma africana ao som de uma morna.

 Ai que saudades aiué!...