Bairro de S. Paulo, Bar Cravo na esquina entre a Travessa de S. Paulo e a Rua dos Pombeiros.
A acompanhar as Nocais, lá vinham uns camarões, uns pratinhos de torresmos, ou uma dobrada bem picante de jindungo que era para se beber mais cerveja para “apagar” o fogo que nos consumia as entranhas.
O amigo Mota, empregado do bar, deambulava por ali servindo as mesas com profissionalismo e quando nos via, a mim e aos meus dois irmãos, dizia: «Ali vêm os irmãos McGregor’s» (baptizados assim pelo Telmo Cravo)
Mas desta vez estava no Bar sozinho. Bebia sem moderação, não ia conduzir, também não podia pois ainda não tinha carta e naquela altura não havia o slogan se beber não conduza. Curioso é que as estatísticas dizem que 30% dos acidentes são provocados pelo excesso de álcool, o que significa que os outros 70% são provocados por quem bebe... água! Devia era ser proibido beber água antes de conduzir!
Mas voltemos ao Bar Cravo. Mesmo com a guerra civil dentro de Luanda, aquele bar estava sempre cheio e como a cerveja já não abundava, tinha-se obrigatoriamente que ser acompanhada com pratinhos dos ditos cujos, a pagar claro. Eram pratos empilhados cheios de torresmos, dobrada e afins mas a mesa cheia de garrafas vazias de Cucas e Nocais que a sede apertava e o calor era imenso.
De regresso a casa, morava na Rua do Lobito, já com as ideias um pouco difusas, sentei-me no meu quarto e na semi-obscuridade, escrevi... escrevi... escrevi!..
Com o cérebro toldado
Por vagas alcoólicas ingeridas,
Versos relembrando o passado,
Coisas de há tanto tempo, volvidas.
Na tristeza e solidão.
Lembro-me de coisas queridas,
Recordo com emoção
Extractos da minha vida.
Minha terra à beira-mar,
Que me chama a clamar,
Ondas na areia batendo,
Meu queixo de frio tremendo.
Gente conhecida vai passando,
Na minha imaginação febril,
Loucuras na mente vagando,
Meu cérebro com as trevas lutando.
Ai, quantas viagens infinitas!
Na escuridão imaginando,
Quantas filhas paridas,
Com fome e sede gritando.
Oh!.. que mundo cruel,
Que lembra o fel sobre o mel,
No peito de alguém tem guarida,
Os soluços de uma mulher perdida.
Procuro novamente concentrar,
Minhas ideias toldadas,
Procuro-me encontrar,
Loucura e imaginação aliadas.
Continuo neste mundo de trevas,
No qual o álcool me ajuda,
Lembro os horrores das guerras,
À geração futura.
E nesta escuridão sem fim,
Escrevo coisas de mim.
Tu mulata nocturna,
Que meu coração queres agarrar,
Teus olhos são como luzes mudas,
Que reflexos querem lançar.
Mas ó coração!,
Que o cérebro toldado não vê,
Que começa uma paixão,
Mulata, tens-me à tua mercê.
Sonhos e mais sonhos,
Na cabeça vão passando,
Continua o cérebro toldando,
Pensamentos no coração os ponho.
Quanta desilusão,
Ébrio continuo escrevendo,
Versos que saem do coração,
Coração quase morrendo.
Mas que sopro de vida,
Na penumbra contra a morte lida,
Abre-se um sorriso no peito tremente,
Mulata, no teu coração, dá-me guarida.
Continuo vagando,
Em emoções sem fim,
Mas que queres tu minha vida?!
Que queres tu mais de mim?!
Meu peito abre-se em pranto,
Lágrimas vou enxugando,
Tristeza quão galeão,
Em minha alma vai navegando.
Os tímpanos a arrebentar,
Olhos tristes a chorar,
Será realidade meu Deus?…,
Ou serão sonhos meus?…
Ao longe música suave escuto,
Relembrando o meu passado,
Contra as trevas luto.
Trevas do meu cérebro toldado.
Maldito álcool sejais,
Mas continuo a beber mais,
Porquê isto?...não sei,
Contra as trevas, não mais lutei.
Meu coração está vazio,
Rio-me neste mundo perdido,
Atinjo o auge da loucura,
Ai vida que me tortura!
Continua a mente vagando,
Recordações vão passando,
Mas…, tenho que reagir,
Não…, não quero partir,
Para o mundo do além,
Mas peço ajuda a quem?!
Não tenho ninguém.
Suor escorre pelo meu rosto,
Sujo como negro fosso,
Negro cavalo, alfanje em punho,
Caveira horrenda, negro manto roto,
Minha alma está querendo matar,
E eu, sem forças, estou a rezar.
E,… milagre meu Deus!
O cérebro das trevas se afastou,
Os pensamentos são novamente meus,
E,… quem me ajudou?!!!…
«Mário vem comer, o jantar está na mesa» - Ouvi ao longe, a voz da minha Mãe!
Luanda-1970
Marius70